Autores: Ivan Maur Calvo, Flávio Santos e Ricardo Bandeira de Méllo

 

O § 6º, do art. 2º da Lei Federal nº 8.629/1993, prevê que, em havendo esbulho possessório ou invasão do imóvel rural, este não poderá ser vistoriado, avaliado ou desapropriado para fins de reforma agrária

Ao contrário do que muitos pensam e defendem em diversos palcos e oportunidades de exposição, a invasão coletiva de imóvel rural, seja ele produtivo ou improdutivo, inviabiliza legalmente a reforma agrária.

Direito de propriedade e função social

O direito de propriedade é tratado no Art.1.228, do Código Civil, que prevê que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar, reivindicar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

A garantia constitucional do direito de propriedade, estabelecida no Art. 5º, inciso XXII, da Constituição Federal, não é absoluta, impondo para sua plena aplicação o cumprimento da sua função social, também previsto no mesmo Art. 5º, inciso XXIII. A propriedade privada e o cumprimento de sua função social são princípios gerais da ordem econômica previstos no Art. 170, incisos II e III da Carta Magna.

Neste contexto, o Art. 186, da Constituição Federal de 1988, diz o que é o cumprimento da função social da propriedade, estabelecendo cumulativamente o cumprimento do (i) aproveitamento racional e adequado; (ii) da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (iii) da observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e (iv) a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Portanto, o Ordenamento Jurídico estabelece para a plenitude e preservação do exercício do direito de propriedade uma dualidade entre as regras que evidenciem o domínio do imóvel por seu então proprietário, para que exerça a posse justa, cumulando o requisito do cumprimento da função social da propriedade.

A Lei Maior também prevê em seu art. 185, inciso II, que a propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária. Ou seja, uma propriedade, que atenda o aproveitamento racional e adequado com produção rural, jamais poderá ser destinada para a reforma agrária.

Em nenhuma hipótese INVASÃO é lícita

O descumprimento da função social da propriedade rural pode acarretar a desapropriação por interesse social, exercida privativamente pela União, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. Ainda, as benfeitorias úteis e necessárias devem ser indenizadas em dinheiro, de acordo com o art. 184, § 1º, da Constituição Federal.

A Lei nº 4.504/1964 (Estatuto da Terra) também regula a desapropriação por interesse social em seus artigos 18 e 19, destacando a importância do cumprimento da função social da propriedade como forma de manutenção da garantia constitucional.

Já a Lei Complementar nº 8.629/1993 regulamenta os dispositivos constitucionais supracitados, relativos à reforma agrária. Em seu art. 2º, a referida lei aduz sobre a fiscalização realizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) que poderá vistoriar imóveis rurais, e caso sejam classificados como improdutivos, poderão ser desapropriados para fins de reforma agrária, por não cumprir sua função social.

Assim, cabe ao INCRA fiscalizar, classificar e, se for o caso, desapropriar imóvel rural pelo descumprimento da função social da propriedade, todavia, sempre em respeito à ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal, tanto no processo administrativo quanto no processo judicial.

Ou seja, inexiste amparo legal para invasões de imóveis, tendo o Ordenamento Jurídico estabelecido procedimento e rito próprios, com requisitos específicos e finalidades, jamais contemplando a autotutela como meio para se atingir o objetivo de tomada da propriedade.

Terra invadida não pode ser objeto de reforma agrária e desapropriação

Frequentemente são noticiadas invasões de terras executadas por movimentos autointitulados sociais, tais como o Movimento Sem Terra (MST), com pleito de realização de desapropriação de imóveis rurais, por interesse social, suspostamente improdutivos para fins de reforma agrária.

Sobre essa prática de invasão clandestina de terras e, por vezes, violenta, com notícias de crimes de furto e de dano à produção rural implantada (em contradição expressa ao que se noticia), não é meio legal de impulsionar a reforma agrária.

Pelo contrário, caracteriza esbulho possessório, segundo as legislações civil e penal, e ainda inviabiliza legalmente qualquer avanço de reforma agrária em tal imóvel.

A previsão legal é que cabe à Administração Pública mensurar se a propriedade está produzindo como deveria, onde o § 6º, do art. 2º da Lei nº 8.629/1993, prevê que, em havendo esbulho possessório ou invasão do imóvel rural, este não poderá ser vistoriado, avaliado ou desapropriado para fins de reforma agrária, senão vejamos:

  • 6º. O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações.

Portanto, a lei veda expressamente a desapropriação de imóvel rural por interesse social, para fins de reforma agrária, quando invadido coletivamente, independente do motivo dito para tal ato, inclusive estabelecendo comando repressivo de apuração de responsabilidade de quem “concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações”.

O Supremo Tribunal Federal – STF firmou entendimento neste sentido, tendo o Ministro Celso de Mello, seguido pelos demais ministro, estabelecido que o esbulho possessório frusta o devido uso da propriedade conforme a função social. Logo, não havendo que se falar em imóvel improdutivo e, portanto, em desapropriação. Ademais, tal prática do movimento social inviabiliza a mensuração, pelo INCRA, se o imóvel está sendo devidamente utilizado, in verbis:

MANDADO DE SEGURANÇA – REFORMA AGRÁRIA – IMÓVEL RURAL – INVASÃO DA PROPRIEDADE POR TRABALHADORES RURAIS REUNIDOS EM MOVIMENTO SOCIAL ORGANIZADO – ESBULHOS POSSESSÓRIOS PRATICADOS, EM TRÊS (03) MOMENTOS DISTINTOS, MEDIANTE AÇÃO COLETIVA – PRÁTICA ILÍCITA DE VIOLAÇÃO POSSESSÓRIA QUE COMPROMETE A RACIONAL E ADEQUADA EXPLORAÇÃO DO IMÓVEL RURAL, APTA A AFASTAR A ALEGAÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE -DESCABIMENTO DA DESAPROPRIAÇÃO-SANÇÃO (CF, ART. 184, CAPUT)- INVALIDAÇÃO DA DECLARAÇÃO EXPROPRIATÓRIA – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. – A prática ilícita do esbulho possessório que compromete a racional e adequada exploração do imóvel rural qualifica-se, em face do caráter extraordinário que decorre dessa anômala situação, como hipótese configuradora de força maior, constituindo, por efeito da incidência dessa circunstância excepcional, causa inibitória da válida edição do decreto presidencial consubstanciador da declaração expropriatória, por interesse social, para fins de reforma agrária, notadamente naqueles casos em que a direta e imediata ação predatória desenvolvida pelos invasores culmina por frustrar a própria realização da função social inerente à propriedade. Precedentes – O esbulho possessório, além de qualificar-se como ilícito civil, também pode configurar situação revestida de tipicidade penal, caracterizando-se, desse modo, como ato criminoso ( CP, art. 161, § 1º, II; Lei nº 4.947/66, art. 20) – A União Federal, mesmo tratando-se da execução e implementação do programa de reforma agrária, não está dispensada da obrigação, que é indeclinável, de respeitar, no desempenho de sua atividade de expropriação, por interesse social, os postulados constitucionais que, especialmente em tema de propriedade, protegem as pessoas e os indivíduos contra eventual expansão arbitrária do poder. Essa asserção – ao menos enquanto subsistir o sistema consagrado em nosso texto constitucional – impõe que se repudie qualquer medida que importe em arbitrária negação ou em injusto sacrifício do direito de propriedade, notadamente quando o Poder Público deparar-se com atos de espoliação ou de violação possessória, ainda que tais atos sejam praticados por movimentos sociais organizados, como o MST – A necessidade de observância do império da lei (rule of law) e a possibilidade de acesso à tutela jurisdicional do Estado – que configuram valores essenciais em uma sociedade democrática – devem representar o sopro inspirador da harmonia social, significando, por isso mesmo, um veto permanente a qualquer tipo de comportamento cuja motivação resulte do intuito deliberado de praticar atos inaceitáveis de violência e de ilicitude, como os atos de invasão da propriedade alheia e de desrespeito à autoridade das leis e à supremacia da Constituição da Republica perpetrados por movimentos sociais organizados, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) – O Supremo Tribunal Federal, em tema de reforma agrária (como em outro qualquer), não pode chancelar, jurisdicionalmente, atos e medidas que, perpetrados à margem da lei e do direito por movimentos sociais organizados, transgridem, comprometem e ofendem a integridade da ordem jurídica fundada em princípios e em valores consagrados pela própria Constituição da República. Precedentes. ( MS 32752 AgR, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-156 DIVULG 07-08-2015 PUBLIC 10-08-2015) (STF – AgR MS: 32752 DF – DISTRITO FEDERAL 9956387-74.2014.1.00.0000, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 17/06/2015, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-156 10-08-2015).

Logo, no momento em que restam noticiadas “ondas” de invasão de imóveis rurais, fundamental se assentar que INEXISTE QUALQUER CONDIÇÃO LEGAL PARA UMA INVASÃO, impedindo no caso de sua ocorrência, inclusive a desapropriação para reforma agrária, além de ser COMPULSÓRIA A RESPONSABILIZAÇÃO DOS AUTORES DAS INVASÕES, na dicção da jurisprudência do STF, AINDA QUE SEJAM MOVIMENTOS SOCIAIS ORGANIZADOS.

Neste contexto, não podem os Poderes constituídos relativizarem uma conduta criminosa, lesiva a múltiplos direitos constitucionais, não se limitando, mas, sobretudo, gerando imensos prejuízos de segurança jurídica para a produção rural brasileira, através de procedimentos infindáveis para cumprimento de decisões judiciais, ausência de resultados efetivos nos expedientes criminais e muito menos através de jurisprudências defensivas e afastadas da realidade: estão invadindo terras produtivas e cometendo crimes, sob a manta de relevo social.